Review - Série Justified


O policial federal Raylan Givens quer cumprir sua palavra com Tommy Bucks, um traficante que está almoçando num prédio chique de Miami. Agindo como um caubói das antigas - inclusive usando chapéu e botas típicas -, ele deu 24 horas para o sujeito sair da cidade, ou então leva chumbo.

O bandido não acredita na ameaça, mas tenta contornar a situação, pedindo para o policial acompanhá-lo na refeição. Em vão. Fim do prazo, ambos sacam as armas, mas somente Givens faz três disparos certeiros, e sai do local como se nada tivesse acontecido.

No entanto, acontece. Durante o inquérito, ele interrompe os jargões do advogado e dá sua versão seca do caso: "Ele sacou antes, e eu atirei nele". Ironicamente o policial é quem acaba expulso, sendo obrigado a voltar para a cidadezinha natal de Harlan, no estado de Kentucky. Jurando nunca mais voltar para o interior, ele acabará reencontrando fantasmas do passado, como o pai criminoso, a ex-mulher e a paixonite de infância.

Este é o resumo do piloto da nova série policial Justified, que estreou há algumas semanas pelo canal Space e que é produzida nos EUA pelo canal FX. A premissa pode até ser simplista demais e descambar a uma série de clichês, como problemas familiares, conjugais e volta às raízes. Contudo, o roteiro e o elenco são geniais o suficiente para fazer desta uma das melhores revelações da safra de 2010.


Origem e roteiros

O primeiro episódio foi todo baseado no conto Fire in the Hole, do consagrado escritor Elmore Leonard, responsável por Jackie Brown e Irresistível Paixão, e que assina como produtor executivo da série. Em seguida, os roteiros são produzidos pelo criador Graham Yost e sua equipe, que conseguem emular com maestria a escrita de Leonard, através de diálogos ágeis e afiados, além de humor sutil e bem engendrado.

O programa engaja a veia policial, porém com distinção: se nas séries policiais tradicionais a trama se concentra em focar nas autoridades e na investigação, sem mostrar os dois lados da situação, Justified dá voz aos criminosos, sejam eles falsificadores de quadros, ex-detentos e fugitivos. E pior; Harlan é tão pequena que bandidos e policiais sempre cruzam caminhos, numa intimidade sufocante.

É nesse recinto desolado e rural que Raylan Givens arregaça as mangas e trabalha investigando roubos, transportando prisioneiros, servindo de guarda-costas e batendo de frente com seu maior inimigo, o ex-nazista e atual pregador Boyd Crowder, no arco dramático principal da história. De início as histórias são fechadas, como se fossem "caso da semana", mas nos quatro últimos episódios o enredo é minuciosamente costurado para mostrar o que ocorre entre Raylan e Boyd, cuja família de caipiras desdentados e ambiciosos fazem o terror de Harlan.

Aprovado por Leonard, os diálogos mostram com eficiência as diferentes emoções de todos os personagens, mas o protagonista se sobressai. Entre tantos exemplos, Raylan não se intimida quando um dos capangas de Boyd o tem na mira da espingarda. "Consegue engatilhar antes que eu faça um buraco em você?", diz ele, calmamente, sem demonstrar medo nem receio; seu inimigo é quem acaba tremendo nas bases. Ou ainda, quando é convidado a visitar uma coleção de pinturas de Hitler, ele não titubeia e responde: "Honestamente, prefiro enfiar meu p**to num liquidificador ligado". Nota-se que, não só Raylan é rápido no gatilho, como também dispara frases ágeis e espirituosas sem a menor dificuldade.


Personagens e atores de peso

Uma das principais crias de Leonard, Raylan Givens é literalmente um caubói em tempos modernos: não tira o chapéu de estimação por nada e carrega com honra o distintivo do U.S. Marshals, a agência policial mais antiga dos Estados Unidos. Ele fascina pela vontade de fazer o que é certo com as próprias mãos, mas sempre demonstrando diferentes facetas, sejam elas de frieza, ingenuidade, indagação e revolta e sempre revestido da cordialidade a que tem direito os heróis dos antigos faroestes.

Sempre fiel ao senso de justiça, Raylan poderia facilmente cair na caricatura e estar fadado à chatice das personagens politizadas, não fosse pela estupenda interpretação do subestimado ator Timothy Olyphant, que, com este trabalho, atinge o melhor momento da carreira, nem fazendo lembrar daquele assassino descerebrado e de voz fina de Pânico 2. Os mais céticos podem achar que o ator atua no piloto automático, por já ter interpretado Seth Bullock, o xerife truculento da série Deadwood, de 2004. Tanto é que, tanto em Deadwood e Justified, ele é chamado de Marshal pelos outros personagens.

Ledo engano; se antes Bullock se valia de olhos arregalados, voz cavernosa e dentes e punhos cerrados, Raylan tem menos caras e bocas e mais consistência. Com a atuação contida, fala mansa que mais parece um sussurro e um roteiro de primeira para trabalhar, Olyphant cativa o público e ganha sua torcida. É intrigante ver o modo que o ator consegue imprimir tanto serenidade quanto fúria divina sem exagerar nas feições, milimetricamente calculadas.

No final das contas, o Raylan de Olyphant só atira pra matar, mas antes tenta resolver os problemas na base da conversa, além de ter boa índole e querer fazer seu trabalho pelo bem da cidade. Acima de tudo, ele também é humano, confidenciando seus problemas e cometendo erros, para deixar de ser aquele arquétipo do herói que não quer falar de seu passado.

O restante do elenco também defende seus personagens com unhas e dentes, afinal Justified não é como Lie to Me ou The Mentalist, cujos atores principais são o único atrativo de tais programas. A começar pelo também ótimo Walton Goggins (The Shield), que faz o misterioso Boyd, cuja atuação nos deixa em dúvida se ele converteu-se mesmo à religião ou então não passa de um disfarce para enganar seus inimigos. Os olhos vidrados do personagem são indecifráveis até mesmo para a própria família. Nick Searcy propicia momentos mais simpáticos fazendo o chefe de Raylan, e nas poucas vezes em que aparece, a ex-esposa de Raylan, Winona (Natalie Zea), trava as melhores discussões com o policial, que ainda não sabe direito o porquê do divórcio.

O revés fica para Ava (Joelle Carter), o interesse amoroso do protagonista - e ex-cunhada jurada de morte de Boyd - e que ainda não convence muito como a mocinha destemida que quer ser independente, e os agentes da U.S. Marshals Tim Gutterson (Jacob Pitts) e Rachel Brooks (Erica Tazel), que até cumprem seus papéis, mas ainda não fazem falta no enredo. Mesmo assim, todos dão o máximo para que a série não caia de qualidade.


À Moda Antiga

Assim como a Patty Hewes de Damages, Tommy Gavin de Rescue Me e Vic Mackey de The Shield, criações anteriores da FX, certamente Raylan Givens tem um lugar cativo na galeria de personagens emblemáticos do canal, justamente por ir contra o êxito de seus antecessores, de caráter ambíguo. O policial ainda faz de tudo para alcançar o objetivo, mas sua construção, que remete aos personagens de bang bang dos anos 60, o destaca. É bom voltar ao tradicional para lembrar dos filmes sem efeitos especiais e que primavam pelo roteiro e pelas atuações surpreendentes. Resta agora apreciar os poucos treze episódios da temporada de estréia de Justified, que embora em quantidade pequena, revela-se uma iguaria sem preço, pois, às vezes, menos é mais.


Justified
Segundas, às 21h no Space


Raylan e Ava


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