Memórias de um nihonjin de poucas palavras (I)

Meu ditian (avô) Ichiro Kawasaki faleceu no dia 22 de fevereiro de 2012, aos noventa anos.

Olhando pelos arquivos no notebook encontrei este perfil feito para um trabalho da faculdade de jornalismo que fiz durante o sétimo semestre, em 2008, para a disciplina de Jornalismo Literário, ministrada pelo professor Celso Falaschi na Puc-Campinas. A proposta era escrever um perfil em cima de uma entrevista com a fonte, relatando-o com divagações do autor.

De modo a fazer uma homenagem ao ditian, resolvi publicar o perfil no blog. Como o arquivo é extenso (são nove páginas no Word), separei-o em três partes. Aqui ele conta como foi sua vinda ao Brasil, e também como foi sua infância.

Acostumado a gesticular com as mãos e falar pouco, deu pra ver durante a entrevista que este odisan (idoso) de barriga protuberante e com voz grossa e pastosa ainda se lembra de muitos momentos de sua vida, tanto que menciona, sem pestanejar, quais eram os pontos em que o bonde parava na época em que morava em São Paulo, há muito tempo:

- Eu pegava o bonde na Teodoro Sampaio, depois passava no Cemitério do Araçá, descia a Rua Consolação, passava em cima do Viaduto do Chá e o ponto final era na Libero Badaró.

Sequer eu sei qual é a rota completa do ônibus que tenho pegado há mais de três anos, pra ir pra faculdade! Isso é que é lembrar-se das coisas, detalhe por detalhe. Entretanto, nem tudo pode passar percebido pelos olhos cansados e cinzas – por causa da catarata – deste issei (primeira geração de japoneses no Brasil), aposentado e...

Alguém abre a porta. Uma obasan (idosa) de sorriso tranqüilo e cabelo encaracolado espiona pela brecha. Onde terá se enfiado seu marido? O odisan, usando seu estimado boné e luvas para se proteger do frio, apenas olhou para ela e:

-... Dangô mokoshiraetá?

Foi com esta pergunta em japonês que minha entrevista com Ichiro Kawasaki – vulgo meu ditian (avô)–, foi interrompida de seu apartamento de noventa metros quadrados, no centro de Campinas. Estávamos eu e ele, numa tarde de sábado nublada, relembrando do passado quando batian (avó) entrou no quartinho do hotokessama (santuário), para ver o que estávamos fazendo.

Do local, minúsculo, cheio de livros e mal iluminado pela persiana fechada, ele aproveitou a deixa para interromper nossa conversa, pedindo pra ela fazer uns dangôs - doce à base de arroz, mas que pra mim sempre foram os famigerados bolinhos de chuva -. Vai ver estava usando muito do tempo dele... Estaria ficando impaciente? Pelo menos sempre o respeitei, afinal nunca chamei o meu avô de “avô” mesmo ou sequer de “você”; é preciso chamá-lo de ditian.

Quando lhe pergunto sobre sua vida, ele logo me falou sobre como foi vir do Japão a bordo do Buenos Aires-maru, mas ele não se lembra muito bem, por estar apenas com cinco anos de idade na época. Lembrar-se daqueles tempos seria ignorar os oitenta e um anos seguintes de sua vida, o que é muito complicado.

Contudo, um garoto da mesma idade que estava no Buenos Aires-maru faz ditian lembrar-se de sua jornada no navio, em 1927:

- Ele estava num lugar bem longe de onde estávamos acomodados. Me dei bem com ele, ficamos amigos mesmo. Mas depois que viemos ao Brasil, a gente se separou, ele foi pra uma fazenda e nós fomos pra outra.

- Em algum momento o ditian o viu de novo? – indaguei, esperando uma resposta imediata. Entretanto, alguns segundos tiveram que passar para que recapitulasse aquele cenário, com os cabelos ao vento e cheio de nihonjins (japoneses) por toda parte.

- Dois anos depois a gente se encontrou e a amizade continuou – enfim, ele respondeu à pergunta.

Temendo fazê-lo se entregar às memórias novamente, perguntei receoso qual seria o nome dele. Mas a resposta veio no ato.

- Shinzo Sakai. – E anotei de imediato.

- Bom, e qual era o trabalho do ditian nas fazendas?

- Por causa da idade eu não trabalhava. Eu brincava. Andava muito no pasto, mas eu tinha medo de boi e de vaca.

- É mesmo? – nunca havia ouvido isso antes, por isso o questionei surpreso.

- É claro! Eu estava morando no Japão, na cidade grande de Sakayama e de repente estou no campo! – ele retrucou, meio que ofendido.

Um minuto! Ele disse que não lembrava a vida dele quando estava no Japão... Mas devo compreender; mudar radicalmente a rotina em busca de melhora na vida não é para qualquer um, então deixa pra lá. Questionei como era o ambiente nesse período. Poucas palavras bastaram para que ele relatasse de que forma os japoneses eram tratados. Pra começar, a comida e o idioma não eram compatíveis com o gosto dos japoneses. Aquelas famílias que não se conformavam com o trabalho na fazenda acabaram apelando para o Yoniguê.

- Yoni- o quê? – indaguei, confuso.

- Yoniguê, significa “fugir à noite”. Vindo há pouco tempo do Japão, não tinha móveis, essas coisas dentro de casa, então a gente fugia né, abandonava a fazenda e fugia e ia pra outros lugares.

- E o ditian, também deu umas escapadinhas?

- Eu não tinha nada a ver com isso! – ele respondeu, meio envergonhado. Desconfiei. – Eu tinha apenas cinco, seis anos. – Ah, tá certo.

- E como o ditian se comunicava? Como aprendeu a falar português?

- Aí é outro problema.

Um tio dele conseguiu um acordo financeiro com o fazendeiro (“não diretamente, foi com um capanga”) para que a família toda pudesse ir para uma vila chamada (“até hoje”) Goembé. De lá, seus pais instalaram uma loja de roupas sob encomenda (“meu pai era costureiro, fazia roupa, e minha mãe costurava vestido”). A escola ficava próxima da loja.

- Lembro que eram quatro filhas de uma família que eram professoras. E Goembé concentrava o maior número de japoneses no Brasil. Nem mesmo São Paulo tinha tanto japonês num mesmo lugar.

Presumi então que as aulas eram em japonês. Que nada.

- As crianças não entendiam nada. Não lembro quantos alunos tinham, mas não tinha UM brasileiro! – ele vociferou, indignado com a situação.

- E a professora...?

- Ela falava, falava, falava, e os alunos... – e o ditian fez bico e bateu uma mão na outra, fazendo aquele sinal de “se vira”. Virar-se à própria sorte.

- Ela só... falava português? O ditian ficava boiando?

O pior ainda estava por vir; havia três classes, e na classe em que ditian estava, havia alunos da primeira e segunda série juntas. Mas, como assim, primeira e segunda série, como os alunos passavam de ano?

- Acontece o seguinte: se você se comportava bem, na classe, você já passava pro segundo ano. Daí, se você se comportou mal no dia seguinte, VOLTA pro segundo ano! Não tinha meio de classificar né...

Vendo que essa escola não tinha futuro, o pai do ditian resolveu mandá-lo para a cidade, para aprender, pela manhã, português no Instituto Campos Sales. Ainda conseguiu uma vaga no período vespertino na Taichô Shogakô, internato e escola de japonês em plena São Paulo. Parecia que a sorte estava mudando de lado: pelo menos o internato era em frente ao bonde. A rotina de estudos, contudo, era dura:

- Começava às 8 da manhã e terminava só às 5 da tarde. E não tinha essa questão de gostar ou não gostar. Era preciso. – pôxa, adivinhou a minha pergunta sobre a opinião dele.

Apesar de tanto estudar, parecia que a vida do ditian estava afinal melhorando. Ele tinha a companhia de trinta alunos nihonjins – a maioria, mais velhos que ele –, e ainda teve o privilégio de morar junto à família de Kanazawa-sensei, seu professor. O seu deleite no local era tanto, que ele não se conteve e me soltou um comentário digno de um menino do campo vendo a cidade pela primeira vez:

- Tinha até piano lá!

- E o ditian tocava?

- Não, só brincava mesmo! – revelou, soltando uma gargalhada debochada.

Mas, mesmo com um piano na casa, a situação ainda era braba. De manhã, o padeiro deixava uma sacola cheia de pães no portão da casa. Mal dava para trinta bocas vazias. Além disso, tinham alguns “espertos” que costumavam roubar alguns, escondidos. No final, só sobrava um pra ele. Coitado, pensei. Mas ele poderia degustar, ao menos, um pãozinho com manteiga. Entretanto, na casa, só tinha chá e açúcar.

- Então o ditian comia pão puro tomando chá?

- Não, comia pão com açúcar.

- Pão com o quê?! – “escutei certo?”, pensei.

- Não tinha nada pra pôr dentro...

- Ahn, certo...

Fiquei desconcertado, e decidi mudar o rumo daquela conversa. Foi nessa mesma época que ditian mostrou-se interessado em kendô, mas ele teve curta experiência no esporte, já que não conseguiu prosperar tão bem no esporte quanto seu amigo, Tanetani Sabura.

- Não conseguia igualar ao Tanetani. E ele desapareceu, antes de começar a Segunda Guerra Mundial...

- Puxa, e o ditian sofreu muito preconceito naquela época, aqui no Brasil?

- Não só eu... – ele sibilou, tristonho.

Consegui; achei outro enfoque pra entrevista.


- FIM DA PRIMEIRA PARTE -

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